A vergonha foi pública, mas a reação também: um edital para selecionar operadores de quiosques e restaurantes da COP 30 em Belém saiu com uma tabela que proibia pratos e ingredientes centrais da culinária paraense — açaí, tucupi, maniçoba — como se a própria cultura local fosse uma ameaça sanitária maior do que a gula de especuladores por lucro e destruição ambiental. O recuo veio rápido após articulação política; ainda assim, o episódio expõe o paternalismo tecnocrático e o desprezo pela Amazônia que prospera quando a direita e seus aparelhos internacionais decidem o que é “seguro” para o povo.
Do absurdo do edital à mobilização
O edital, publicado pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) com o objetivo de escolher operadores para 87 quiosques na Blue Zone (acesso restrito) e na Green Zone (acesso da sociedade civil), listava ingredientes e preparos autorizados e proibidos. Entre os itens barrados estavam o tucupi (caldo de mandioca), a maniçoba (prato feito à base da maniva) e todos os tipos de açaí — classificados no documento como de “alto risco de contaminação”. Também constavam na tal lista sucos de fruta in natura; maionese e molhos caseiros; bebidas abertas e sem nota fiscal; leite cru e derivados não pasteurizados; doces caseiros com cremes ou ovos sem refrigeração; gelo artesanal ou não industrializado; alimentos preparados com antecedência e fora de refrigeração; e produtos artesanais sem rotulagem e registro sanitário. Um catálogo de desconfiança que transformava a sabedoria popular em ficha técnica para banimento.
O ministro do Turismo, Celso Sabino, entrou em cena e, felizmente, a pressão local — com chefs, lideranças e a sociedade que conhece o valor do seu próprio cardápio — mostrou que não era aceitável que um evento sobre clima viesse acompanhado de um imperialismo gastronômico. “O ministro do Turismo, Celso Sabino, entrou na articulação com chefes de cozinha paraenses para garantir que pratos e ingredientes típicos da culinária paraense como maniçoba, açaí e tucupi tenham espaço na COP 30”: Ministério do Turismo. “Sabino fez uma articulação com a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) e com o secretário-geral da COP, Valter Corrêa”: Ministério do Turismo. A OEI publicou uma errata excluindo a tal tabela de proibições — vitória parcial, fruto da mobilização.
Não é apenas sobre comida: é sobre quem decide o que vale e o que não vale para a Amazônia. Enquanto bilionários e setores privados querem ditar a agenda — e lucrar com “soluções” que privatizam rios, terras e saberes — resistir ao apagamento cultural é também resistir ao avanço do capital sobre o comum. O açaí, além de símbolo cultural e alimento popular, é insumo estratégico para a bioeconomia do Pará. Proibir seu uso em um evento internacional é, na prática, criminalizar modos de vida e favorecer imposições externas. Há aqui uma disputa clara: ou a Amazônia se apresenta por seus habitantes e saberes, ou se torna vitrine neutra para políticas que nada têm a ver com justiça social.
A importância simbólica e prática
Que Belém tenha sido reconhecida como Cidade Criativa da Gastronomia pela Unesco e figura entre as 10 melhores gastronomias do mundo segundo a Lonely Planet não é detalhe decorativo. “Belém é reconhecida como cidade criativa da Gastronomia pela Unesco e este ano recebeu o prêmio pela publicação Lonely Planet, maior editora de guias de viagem do mundo, como única cidade brasileira entre as 10 melhores gastronomias do mundo”: Ministério do Turismo. Esses prêmios mostram o alcance cultural e turístico da culinária local — algo que deve ser ampliado com políticas públicas, proteção das cadeias produtivas locais e incentivo às estatais e projetos comunitários, não cerceado por editais que tratam a cultura como risco sanitário ficcional.
Essa pequena vitória — a retirada da tabela — precisa se transformar em política permanente: apoio à produção local, defesa das cadeias de valor da bioeconomia e protagonismo amazonense nas decisões que afetam o seu território. Lula, o PT e as forças populares têm papel central para garantir que eventos como a COP 30 não sejam plataforma para apagar vozes ou entregar recursos a corporações. A luta segue: contra o bolsonarismo e suas ramificações, contra a privatização dos bens comuns, e a favor de um Brasil que valorize quem trabalha e produz nas margens da floresta.