Vivemos mais um episódio da longa novela em que o Congresso e as plataformas digitais tentam dar aparência de solução a um problema social profundo: a precarização do trabalho por aplicativos. O relator da comissão especial que analisa a proposta, deputado Augusto Coutinho (Republicanos-PE), anunciou cronograma ambicioso para votar o texto ainda este ano, com dezenas de audiências públicas e prazo apertado para aprovar o relatório. Mas quem manda nessa história: os trabalhadores ou as empresas bilionárias que lucram com a informalidade organizada?
Coutinho disse querer “evitar um desprazer de algum tribunal legislar por nós”, e defende que o Congresso regule para dar segurança tanto aos trabalhadores quanto às plataformas. “Na minha opinião, hoje a relação do trabalhador com as plataformas é uma relação injusta. É uma relação em que o trabalhador não tem nenhuma segurança em nada. E também é preciso dar às próprias plataformas segurança jurídica, para que elas saibam quais as obrigações deles”, afirmou o deputado Augusto Coutinho. E completou com o calendário: “A ideia é que a gente vote o relatório até o dia 15 de novembro e a gente tenha até o final do ano para votar em plenário.” Tudo muito célere — e, convenhamos, conveniente para quem quer encerrar a discussão antes que a mobilização cresça.
O que propõe o projeto
O texto sob análise, apresentado pelo deputado Luiz Gastão (PSD-CE), tenta costurar soluções técnicas: regras sobre cobrança de taxas pelas empresas, remuneração dos trabalhadores, proibição de taxa sobre gorjetas e a qualificação desses trabalhadores como contribuintes individuais da Previdência Social. O projeto ainda prevê que a alíquota da contribuição previdenciária seja de 5% sobre o limite mínimo mensal do salário de contribuição para trabalhadores de família de baixa renda. Detalhe: o relator promete ampliar o alcance para “qualquer serviço realizado por meio de aplicativo ou plataforma digital, e não apenas dos serviços de transporte de pessoas e de entrega de bens”.
Entre acertos e omissões, há pontos progressistas — como o veto à cobrança sobre gorjetas — e outros que revelam a lógica empresária: transformar trabalhadores em contribuintes individuais significa deslocar custos da empresa para o trabalhador, dentro de um quadro em que a proteção social já é rala. Não podemos permitir que a regra seja escrita para favorecer as plataformas enquanto o trabalho segue precarizado e sem direitos plenos.
A pressa em votar essa matéria até dezembro mostra a pressa política de enterrar o debate em termos que preservem o lucro dos intermediários. As dez audiências públicas anunciadas soam bem, mas quem define o roteiro dessas audiências e quais vozes terão peso real? Quantos trabalhadores, quantos representantes de sindicatos combativos e quantos técnicos comprometidos com proteção social efetiva serão ouvidos frente ao coro poderoso de juristas de mercado e lobistas das plataformas?
Por que a esquerda precisa entrar na disputa
Como jornalista e militante socialista, digo sem rodeios: este tema exige intervenção estatal forte e clara defesa das estatais e dos serviços públicos. Não dá para aceitar que a resposta seja apenas enquadrar a informalidade com uma contribuição simbólica e espernear que as plataformas tenham “segurança jurídica”. Segurança jurídica para quem? Para os bilionários digitais que faturam às custas da exploração de entregadores e motoristas?
Precisamos de direitos reais, não de migalhas formatadas por Excel. É necessário garantir piso mínimo decente, jornada regulamentada, acesso pleno ao INSS como segurado com direitos, seguro contra acidentes de trabalho, e mecanismos de fiscalização e punição às empresas que burlam a legislação. E, acima de tudo, a esquerda e o movimento sindical precisam empurrar esse debate para que o Estado intervenha como regulador e provedora, não como facilitador de lucros privados.
O PT e o campo progressista têm papel central nessa disputa: não só disputar votos, mas transformar essa pauta em instrumento de luta contra o capital financeiro e a precarização. Se nos deixarmos ao sabor das negociações de gabinete e das pressas parlamentares, o resultado será previsível — e cruel para quem vive do aplicativo.
A batalha pelo trabalho digno nos apps começa agora: acompanhar as audiências, pressionar parlamentares, organizar os trabalhadores, plantar ação jurídica e política para que a legislação garanta direitos e não sirva de verniz para a exploração. Quem pensa que regulação tímida resolve está enganado — ou é cúmplice. E nós não seremos cúmplices.