Por incrível que pareça — e por trágica que seja a ironia — pela primeira vez um banco brasileiro foi formalmente intimado a esclarecer o destino de poupanças abertas por pessoas escravizadas no século XIX. Não é apenas uma investigação burocrática: é a rasgadura de um véu que tenta varrer para baixo do tapete os restos financeiros da escravidão. O Ministério Público Federal deu 30 dias para a Caixa informar as medidas que toma para organizar, catalogar e digitalizar esse acervo; prazo final: 15 de setembro de 2025. Quem diria que seria preciso um movimento social empunhando memória para arrancar respostas do Estado e de um banco que sempre se fez de filantropo institucional!
Memória, reparação e responsabilidade estatal
A representação veio do Quilombo Raça e Classe e trouxe à tona uma história que choca pela banalidade do roubo: cadernetas de poupança abertas por pessoas escravizadas — muitas vezes para juntar o dinheiro da própria alforria — que depois da Abolição ficaram à mercê do tempo e da inércia institucional. Em reunião no dia 15 de agosto, estiveram presentes representantes da Caixa, ativistas e a historiadora Keila Grinberg, que explicou a lógica legal por trás dessas contas: a partir de 1871, com a Lei do Ventre Livre e, principalmente, com o regulamento de 1872, surgia a possibilidade de abrir poupança na Caixa com o objetivo de comprar a liberdade. “A pergunta que se faz hoje é: depois da Abolição, o que aconteceu com essas poupanças? … Eu acho que é uma pergunta muito legítima que se faz” – Keila Grinberg (UNIRIO/Universidade de Pittsburgh).
O procurador Julio José Araújo Junior não trata o caso como mera curiosidade histórica: trata como obrigação de justiça. “A grande questão que se coloca, e que tentamos apontar e discutir, é: onde estão essas poupanças, esses recursos, e a eventual responsabilidade de quem deixou de repassá-los? E o acesso à informação por descendentes e por toda a população em relação a um fato tão relevante” – Julio José Araújo Junior, procurador da República. Não é só sobre números; é sobre memória, sobre direito de acesso e sobre reparação. Negligenciar essas perguntas é alimentar a impunidade histórica com o mesmo cinismo com que certos setores da direita romantizam o passado escravocrata.
A Caixa admite a existência de um vasto acervo — cerca de 15 quilômetros lineares de documentação — e, num gesto que beira o escárnio, afirmou que a catalogação completa poderia levar mais de 20 anos. O MPF, com razão, deu prazo curtíssimo para uma resposta pragmática: 30 dias. A própria instituição diz que as cadernetas estão preservadas e disponíveis para pesquisa, chegando a citar casos em que titulares continuaram a movimentar contas após 1888, como a conta do escravo Ismael que fez retirada em janeiro de 1889. “A CAIXA esclarece que, desde a fundação do banco, em 1861, a instituição tem um papel fundamental nas transformações sociais do país… As cadernetas mantidas nas unidades da CAIXA Cultural são preservadas por equipes multidisciplinares” – CAIXA Econômica Federal.
Mas será que a preservação em uma prateleira de museu resolve a dívida com milhões de descendentes que sofreram a miséria imposta pela escravidão? Exigir a abertura imediata de relatórios, a digitalização e a transparência total não é caça às bruxas: é a obrigação republicana de quem administra o patrimônio nacional — especialmente quando esse patrimônio inclui registros de exploração.
O debate sobre prescritibilidade existe, claro, mas não pode servir de escudo para a postergação eterna da reparação. Precisamos transformar essa investigação num instrumento de memória, verdade e responsabilização — e avançar em medidas efetivas de reparação material e simbólica. E mais: é hora de derrubar a retórica conservadora que relativiza a dívida histórica do Brasil e impulsionar um projeto popular que tire o país das mãos do mercado e dos bilionários. O PT e Lula, quando dirigem esse combate, não atuam apenas em esfera eleitoral: podem ser catalisadores de uma nova etapa de luta anticapitalista que coloque a reparação no centro das políticas públicas.
A Caixa foi instada. A sociedade tem de exigir que não fiquem só palavras bonitas em notas oficiais. Que se diga logo: queremos acesso, transparência e reparação — não desculpas e prazos de duas décadas! O escândalo não é só histórico; é político, econômico e moral. E a esquerda tem de transformar essa abertura de inquérito em política concreta, em luta organizada nas ruas e nas instituições. Quem esperou tanto não quer esperar mais.