O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), voltou a mexer no vespeiro da política nacional ao arquitetar um projeto alternativo sobre anistia aos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro. A proposta não chega como um favor ao país, mas como uma jogada política: tenta oferecer uma saída menos escandalosa que a “anistia ampla, geral e irrestrita” defendida por bolsonaristas e seus aliados, sem, porém, contemplar Jair Bolsonaro. É jogo de cena, manobra parlamentar e sinal claro de que a direita está disposta a tudo — menos a aceitar as consequências de sua própria barbárie.
Convencer a oposição: a manobra e seus limites
A ideia central do projeto de Alcolumbre é técnica, mas com efeito prático: unificar em um único crime — para quem esteve na linha de frente dos ataques às sedes dos Três Poderes — a tentativa de golpe de Estado e a abolição violenta do estado democrático. Com a junção, haveria apenas uma pena, reduzindo o total aplicado hoje para dois crimes separados. Na prática, isso facilitaria progressões de regime e aliviaria cadeias para vários réus.
Não é anistia total — é redução de dano para os culpados. É também uma tentativa de dividir a coesão da base bolsonarista, que exige selvageria jurídica para livrar seu líder. Alcolumbre aposta numa solução intermediária: dá um passo em direção aos defensores da “paz social” e, ao mesmo tempo, tenta arrancar o rótulo de traidor dos que ainda fingem defender a ordem democrática.
Mas convencer os bolsonaristas a votar uma proposta que não salva o ídolo de estimação será missão quase épica. Esses mesmos que pediam anistia irrestrita querem espetáculo e absolvição — não um remendo jurídico. A influência de dirigentes do PL e de grupos radicais é real e potente; pelo menos parte da tropa de choque tende a rejeitar qualquer texto que não garanta o perdão ao chefe.
Planalto e Câmara: a direita avançando, o Senado como freio
Enquanto isso, na Câmara o cenário é alarmante: ganhou força a proposta da anistia ampla, principalmente com a entrada do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, nas negociações. O texto tem apoio explícito do PL, do Republicanos, do União Brasil, do PP e de fatias do PSD. Traduzindo: um bloco parlamentar disposto a desmontar nas mesas do Congresso o que o país levou anos para erigir de volta — o respeito às instituições.
O governo Lula percebe a gravidade. No Planalto, há a constatação de que a Câmara tende a favorecer a anistia ampla e que só o Senado, com sua dinâmica distinta, teria chance de barrar um escândalo que beneficiaria Jair Bolsonaro. Por isso Alcolumbre aparece aos olhos do Executivo como um balão de ensaio: não o inimigo, mas o operador de um debate que pode ao menos partir a base bolsonarista. Ainda assim, aliados do presidente avaliam que Alcolumbre dificilmente contendrá por completo a ofensiva — daí a pressa em construir um texto alternativo que não abarque o ex-presidente.
É importante lembrar: não se trata apenas de jogo político ou de redução de penas tecnicamente calculada. Trata-se de honra democrática. Permitir que quem organizou ou participou de uma tentativa de abolição violenta do regime democrático saia ileso é premiar a violência e consolidar a impunidade como instrumento político. A direita quer varrer a culpa por baixo do tapete; nosso dever é impedir que o tapete vire trono.
O desafio agora é claro: identificar aliados no Senado que genuinamente queiram proteger o Estado democrático e derrotar a chantagem da anistia ampla, enquanto se luta politicamente para que a esquerda e a base progressista não cedam a acordos que transformem justiça em negociação de salão. A derrota do bolsonarismo passa por responsabilização, fortalecimento das instituições estatais e enfrentamento frontal das narrativas que pretendem transformar criminosos em mártires. Se o Senado falhar, a Câmara pode entregar ao país um presente venenoso — e a luta popular terá de redobrar-se nas ruas e nas urnas para reconstruir o que eles tentam destruir.