No quarto dia do julgamento da Ação Penal 2668, o ministro Luiz Fux deu um verdadeiro espetáculo de erudição — e de acrobacias jurídicas — para tentar separar os nós da trama golpista que sacudiu o país. Usou metáforas, trouxe doutrina clássica e moderna do direito penal, e acabou votando, pasmem, pela absolvição de Bolsonaro em parte das imputações. Resta ver se a justiça seguirá essa ginástica retórica ou se a responsabilização política e histórica continuará firme.
Metáforas que tentam desconectar fatos
Fux descreveu o “iter criminis” da sequência de atos como uma girafa: o corpo seriam os episódios eleitorais e a chamada “Operação Punhal Verde-Amarelo”, e a cabeça — o 8 de janeiro de 2023 — estaria separada por um longo pescoço. A mensagem é clara: distância, não continuidade. E, como bom afiador de imagens, lembrou da velha metáfora de Evaristo de Moraes — o fato deve encaixar-se na lei “como a mão numa luva”. Traduzindo: se a cabeça não encaixa no corpo, talvez não haja crime único.
É uma leitura que soa confortável para quem quer desconectar a escalada golpista de seu desfecho violento. Mas será que a sociedade vai aceitar que a cabeça do golpe esteja tão “distante” dos atos preparatórios? Pergunto: quem compra essa separação entre “preparar” e “executar” quando vimos multidões dirigidas, logística montada e discursos que inflamaram o ataque às instituições?
Do reconhecimento de incompetência à continuação do julgamento
Fux reconheceu a incompetência do STF em alguns pontos — e, em letra fria, poderia ter encerrado ali a atuação da Corte. No entanto, adiantou seu voto sobre o mérito, alegando que, vencido na preliminar, poderia seguir julgando. Sobre Alexandre Ramagem, preferiu declarar a questão “prejudicada” por causa da suspensão aprovada pela Câmara, o que adiou qualquer julgamento contra o parlamentar em exercício. Resultado prático: atores centrais veem parte de sua exposição jurídica sendo empurrada para escaninhos políticos.
Absorção de crimes e a questão das penas
Num movimento técnico que tem implicações óbvias, Fux entendeu que o crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito “absorve” a tentativa de golpe de estado. Em termos práticos, isso evita a soma de penas que poderia resultar em punições muito mais severas para os responsáveis. É uma economia de penas que, para muitos, terá o gosto amargo de impunidade.
A metáfora do “roubo que absorve a ameaça” é didática — mas a pergunta que fere é política: por que reduzir a dimensão penal de uma ação que buscou, precisamente, destruir a própria democracia?
Análise individualizada e o peso das “preparações”
Ao condenar Braga Netto e Mauro Cid e poupar outros réus, Fux baseou-se na ideia de responsabilidade penal individual e subjetiva. Para ele, muitos dos denunciados não passaram da fase dos atos preparatórios, sem iniciar a execução do crime. No entendimento finalista — citado por Fux com referências a Welzel, Roxin e outros — conta não só o que foi feito, mas o que se queria fazer. Isso deveria tornar mais fácil, não mais difícil, responsabilizar quem arquitetou a violência política.
Ao longo do voto, o ministro recorreu à história do direito penal — de Beccaria a Roxin — para sustentar sua tese. Erudição não falta. Falta, para os que veem na trama golpista uma ameaça real ao Estado democrático, a coragem de conectar esses fios e aplicar consequências proporcionais.
Se a direita buscar proteção nas sutilezas hermenêuticas dos códigos, que saiba: a luta política não se encerra na tese jurídica bem formulada. A memória dos ataques, das vidas ameaçadas e da tentativa de destruir instituições seguirá viva nas ruas e nas urnas. Lula e o PT — por mais insuficiências que tenham — são hoje peças centrais deste novo ciclo de resistência popular, e cabe a nós empurrar o país adiante, não recuar diante de salva de argumentos que tentam normalizar o golpe. Quem acha que a batalha acabou vai acordar surpreso com a onda de organização social que vem aí. Afinal, democracia se defende nas cortes, mas se conquista nas ruas!