A manobra do PL para salvar o mandato de Eduardo Bolsonaro é um tapa na cara da democracia — e só terá sucesso se o presidente da Câmara, Hugo Motta, quiser fechar os olhos. Nomear o filho do capitão como líder da minoria para que ele possa trabalhar dos Estados Unidos e ter suas faltas abonadas é o tipo de jogo sujo que já virou roteiro: casamento entre rachaduras institucionalizadas e o fisiologismo rasteiro do centrão. A operação se apoia num ato aprovado na gestão de Eduardo Cunha, em 2015, mas assessores da Câmara afirmam que esse ato perdeu validade ao fim daquele mandato. Ou seja: mais uma tentativa de reciclar artifícios antiquados para encobrir crime político.
O PL garante que o ato ainda está em vigor; o PT, que vai recorrer, entende que a manobra é ilegal. “A indicação de Eduardo Bolsonaro foi atípica e iremos analisar o caso”, disse Hugo Motta. E, sim, há uma regra clara no regimento interno: artigo 228 determina que, para afastar-se do território nacional, o deputado deve avisar previamente à Presidência, indicando a natureza e a duração do afastamento. Nada disso foi cumprido com a pressa e a cara de pau características do bolsonarismo e seus satélites. Trata-se de uma tentativa de blindagem política para escapar às consequências de atuação golpista.
Atípica
O rótulo “atípica” lançado pelo próprio presidente da Câmara é, ao mesmo tempo, alerta e teste. Será que Hugo Motta vai se curvar ao canto da sereia autoritária e capitular diante das pressões? Eduardo Bolsonaro, como se não bastasse o cinismo institucional, já despejou uma ameaça pública: caso Hugo Motta não paute o projeto da anistia, haveria “sanções” por parte dos Estados Unidos — uma explícita chantagem externa que mistura intimidação diplomática com teatro político. A chantagem não pode servir de justificativa para torcer o regimento a favor de um clã que tenta se blindar na impunidade.
Enquanto isso, há movimentações paralelas para decidir a pauta: na quarta-feira caberia a Motta pautar a urgência do projeto de anistia, e havia articulação para derrotar o pedido do PL. Caso vença a operação contrária ao PL, a discussão sobre a tal anistia para os envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023 poderia ser enterrada — e é nisso que a direita aposta para resgatar boa parte do projeto político do bolsonarismo. Se a anistia passar, o que teremos é a institucionalização de uma anistia seletiva: perdão para os golpistas, castigo para o povo.
O PT já declarou que recorrerá da indicação e aponta a ilegalidade da manobra. “Hoje ele está numa situação ilegal”, afirmou o PT. Essa resistência institucional é necessária, mas não suficiente. A batalha vai além das salas de comissão: é política e social. A direita rica e seus aliados no Congresso querem transformar privilégios em regra e impunidade em política de Estado. Eles usam o jabuti das regras antigas para enterrar a responsabilidade política. Não é apenas questão de técnica legislativa: é luta de projeto de país.
Como militante e jornalista, não me cabe hesitar no diagnóstico: essa operação tem cheiro de vingança e medo. Vingança porque busca proteger um clã; medo porque a direita sabe que, se responsabilizada, sua viabilidade eleitoral e institucional desmorona. Caberá à Câmara — e à militância democrática nas ruas e nas redes — impedir que uma manobra alegando “formalismo” sirva de trampolim para o absolvição de quem atentou contra a Constituição.
No fim das contas, a decisão de Hugo Motta não será só um ato administrativo. Será um barômetro do equilíbrio de forças no Congresso e da disposição da esquerda e da sociedade organizada em não deixar o bolsonarismo reescrever as regras do jogo a seu favor. Se a Câmara acender o farol verde para a manobra, preparem-se para outra etapa de luta — e para mostrar, com força, que impunidade não terá mais espaço neste país.