A reforma tributária em debate tem cara de avanço técnico, mas no fundo é campo de batalha político: enquanto o governo tenta vender uma solução que reduz fraudes e traz créditos tributários, milhões de pequenos empresários ficam numa encruzilhada entre manter a simplicidade do Simples Nacional ou entrar num regime híbrido que exige contabilidade mais fina, controle da cadeia e disciplina fiscal — coisas que a maioria das micro e pequenas empresas mal tem hoje. As disputas entre técnicos, economistas e interesses empresariais mostram que o resultado não será neutro; vai redesenhar relações de poder no mercado e testar a capacidade do Estado de proteger os pequenos contra a pressão por eficiência que só beneficia grandes players.
Escolha que pode definir clientes
No novo desenho, empresas do Simples que vendem para outras pessoas jurídicas terão de optar entre o regime atual e o chamado híbrido, em que o IBS e a CBS são apurados à parte, permitindo que compradores maiores abatam tributos pagos nas etapas anteriores. Essa reforma vai obrigar milhões de pequenos empresários a decidir entre manter a simplicidade ou entrar na guerra dos créditos tributários. Como alertou o advogado tributário Thiago Santana Lira: “Quem atua no meio da cadeia produtiva e não aderir ao híbrido pode perder mercado, porque o cliente [empresa compradora] não terá como aproveitar créditos tributários na compra”, afirmou Thiago Santana Lira. A lógica mercadológica é cruel: se seu cliente maior só compra de quem permite crédito, você some do cardápio.
Impacto no fluxo de caixa e na contabilidade
Outro ponto que não é detalhe técnico, mas bomba de efeito retardado: o empresário poderá pagar imposto antes de receber do cliente, afetando fluxo de caixa e exigindo mais organização. O que está em jogo não é só contabilidade: é quem sobrevive no mercado e quem será engolido pela burocracia. Carlos Pinto, do IBPT, sintetiza o problema prático: “No momento em que paguei e já separei o imposto, você vai ter a repercussão no fluxo de caixa. Será que o empresário consegue viver sem o dinheiro do imposto rodando no caixa dele?”, questionou Carlos Pinto. Ele também destaca a obrigação de acompanhar se seus fornecedores pagaram tributos, condição para gerar crédito: “Hoje você gera um crédito, sendo você não precisa se preocupar a empresa [que vendeu insumos] pagou seu imposto. Com a reforma tributária, esse crédito só vai ser gerado pelo adquirente se o imposto tiver sido pago [na etapa anterior]”, explicou Carlos Pinto. Tradução informal: responsabilidade e fiscalização descem para o pequeno, enquanto o grande sai ganhando com créditos.
Prazos, exceções e promessas do governo
O governo diz que o impacto será pequeno: segundo a equipe econômica, só cerca de 1,3% das vendas do Simples seriam afetadas em competitividade; para o MEI, nada muda. O secretário Bernard Appy admite a dor de colocar no sistema valores separados para União, estados e municípios, mas afirma que é bom para o país. “Isso pega todas as empresas. Isso é bom para o país. […] As empresas vão ter que fazer conta para escolher qual o melhor sistema, sim”, afirmou Bernard Appy. Appy também relativiza perdas: “Se ninguém puder perder absolutamente nada em relação ao que a gente tem hoje, não muda o sistema tributário. Só que o sistema tributário [atual] impede o país de crescer”, disse Bernard Appy. O cronograma prevê testes do novo sistema em 2026, operação parcial da CBS em 2027 e transição do ICMS/ISS para o IBS até 2032 — um processo longo, cheio de armadilhas e janelas para pressão de grupos empresariais.
A história mostra que mudanças técnicas são políticas com gravata: dependem de quem atua na interpretação, na fiscalização e na aplicação. Enquanto a direita vocifera contra qualquer arrecadação que desafie privilégios e os bilionários lambem os beiços, cabe à esquerda — e ao projeto progressista que o PT hoje encarna nas instâncias do governo — empurrar a reforma para proteger micro e pequenos empreendedores, fortalecer o papel das estatais e garantir que o sistema não vire instrumento de concentração. Se queremos justiça tributária de verdade, a batalha agora é política e não apenas contábil: organização, mobilização e pressão por medidas compensatórias para que a transição não sacrifique os que sustentam a economia real.