A Aneel decidiu reagir a um problema que, ao mesmo tempo em que deveria ser motivo de orgulho — a produção crescente de energia limpa — expõe as contradições de um sistema moldado para favorecer interesses privados e antigos monopólios. O que está em curso é a tentativa de criar protocolos para desligar parte da geração que hoje opera fora do controle direto do Operador Nacional do Sistema (ONS), começando pelas usinas sob responsabilidade das distribuidoras e atingindo, em seguida, pequenas hidrelétricas, mini e microgeração distribuída. A conta técnica pode fechar, mas a conta política ainda precisa ser paga!
O que muda na prática
O cerne da questão é simples: parques solares e eólicos produzem hoje mais do que a rede consegue absorver em certos momentos. Quando isso acontece, há risco de descontrole de tensão e frequência. O ONS tem autoridade para cortar usinas conectadas ao Sistema Interligado Nacional (SIN), mas não tinha protocolos claros para atuar sobre geração ligada à rede de distribuição — justamente onde estão muitas pequenas usinas e o fenômeno da MMGD (micro e minigeração distribuída). Resultado: decisões de emergência, cortes diários e um alerta vermelho sobre a segurança do sistema.
“O ONS apresentou as linhas gerais da proposta do Plano de Gestão de Excedentes de Energia na Rede de Distribuição, que será enviado à ANEEL até 31 de outubro.” — Operador Nacional do Sistema (ONS).
Isso significa que Aneel e ONS vão alinhar procedimentos para que, quando necessário, as distribuidoras ajudem a controlar ou interromper a injeção de energia desses geradores. Segundo a Aneel, poderão também vir medidas regulatórias para viabilizar o plano. Parece técnico? É político também — afeta consumidores que investiram em painéis e pequenas usinas, altera a relação entre geradores, distribuidoras e o operador central, e coloca na mesa a questão de quem manda na energia do Brasil.
“As usinas que estão ligadas na distribuição não têm uma interlocução direta. Quando precisa desligar alguma coisa, o ONS fala diretamente com as empresas ou usinas eólicas e solares que estão interligadas ao SIN. Agora, se precisar desligar a geração, [o ONS] vai pedir as distribuidoras que atuem juntas às usinas que estão ligadas na distribuição para que elas também sejam desligadas.” — Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia.
O recado de Barata deixa claro o nó: a infraestrutura foi construída num país com tradição de privatização e fragmentação da gestão energética — e agora o excesso de energia, vindo sobretudo do Nordeste, expõe a fragilidade desse arranjo.
Não se enganem: tratar o problema apenas como um ajuste técnico seria cínico. Controlar a oferta sem fortalecer um sistema público e integrado é empurrar com a barriga decisões que prejudicam consumidores e pequenos produtores. E mais: existe uma oportunidade política de ouro para avançar na defesa de estatais fortes e de um planejamento energético democrático, que priorize serviço público e soberania, não o lucro de meia dúzia de acionistas.
Ao mesmo tempo, há que se proteger quem apostou na transição energética — famílias, cooperativas, pequenos empreendedores — para que não sejam penalizados por um modelo ineficiente de coordenação. Estamos diante de um teste: ou fortalecemos o controle público e a coordenação do sistema, ou cedemos mais espaço para que tecnologias limpas sejam capturadas por interesses privados.
É preciso, portanto, atenção crítica às soluções que Aneel, ONS e distribuidoras apresentarem. Lutemos para que o plano garanta segurança do sistema sem sacrificar a democratização da geração renovável. E que o debate sirva de impulso para um projeto maior — o de uma transição que seja socialmente justa, sob controle público, e que avance com a audácia que o momento histórico exige!