A batalha em torno da chamada “PEC da Blindagem” colocou o Senado em mais um drama que lembra o velho jogo de cartas marcado: deputados e senadores querem trocar a investigação por proteção, e a sociedade responde com pneus queimados de indignação nas 27 capitais. O relator na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Alessandro Vieira (MDB-SE), já foi direto ao ponto e pediu a rejeição do texto por inconstitucionalidade, alertando que a proposta abre espaço para proteger corruptos e criminosos dentro do Parlamento. “[A PEC] configura portas abertas para a transformação do Legislativo em abrigo seguro para criminosos de todos os tipos” — Alessandro Vieira (MDB-SE). Não é exagero: é tentativa explícita de transformar o Congresso em cofre intocável.
O recuo nas ruas foi rápido. Manifestações em todo o país e repercussão negativa sinalizaram para o Senado que seguir em frente poderia ser suicídio político para muita gente. Quando o povo acorda, as cascas de banana somem do caminho dos poderosos! Até quem se apresenta como “centrista” tenta se distanciar: “isso não é uma questão de esquerda ou direita. Ninguém está aqui para defender bandido. O texto deve ser derrubado amanhã” — Carlos Portinho (PL-RJ). É melancólico assistir a hipócritas descobrirem o óbvio apenas quando mobilização social os pressiona.
O que diz a PEC?
A proposta é um festival de blindagens que interessa exclusivamente aos que têm algo a esconder. Entre os pontos principais estão:
– prevê que deputados e senadores só poderão ser processados criminalmente após aval da respectiva Casa, em votação secreta, sem registro nominal;
– determina votação secreta para validação de prisão em flagrante de parlamentares;
– amplia foro privilegiado para presidentes nacionais de partidos com representantes eleitos, remetendo seus julgamentos apenas ao STF;
– estabelece que medidas cautelares — busca e apreensão, bloqueio de bens — só podem ser decretadas por ordem do STF;
– não toca na prerrogativa da Polícia Federal de instaurar investigações, mas fecha o cerco às fases decisivas do processo.
Um estudo do g1 mostrou o óbvio histórico: quando regras parecidas vigoraram entre 1988 e 2001, o Congresso autorizou apenas um processo em todo o período — ironicamente, era exatamente o tipo de auto-anistia institucional que a PEC quer restaurar. É um convite para impunidade em escala nacional.
No plano político-institucional, a derrota na CCJ pode significar arquivamento definitivo — ou a abertura de um recurso por nove senadores para levar o texto ao plenário. Há ainda a possibilidade de que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, opte por pautar ou não o projeto, numa dança de acordos para salvar aliados. “Será uma oportunidade de enterrá-la de vez” — Randolfe Rodrigues (PT-AP), afirmou o líder do governo, já projetando o funeral dessa manobra.
Não faltam tentativas de maquiar a proposta: Sérgio Moro (União-PR) e 13 senadores sugeriram emenda para restringir a exigência de autorização prévia apenas aos crimes contra a honra. Mas com o relator pedindo a rejeição integral, essa emenda não poderia ser votada separadamente como destaque. As entidades que formam a coalizão Pacto pela Democracia também soaram o alarme: “a proposta pode acabar com ações sobre desvios de dinheiro público provenientes de emendas parlamentares” — Pacto pela Democracia.
Se o objetivo da direita e dos caciques era preservar privilégios, o tiro pode sair pela culatra: a reação popular unida, a pressão na mídia e a resistência de alguns parlamentares mostram que blindagem tem limite quando a sociedade se organiza. Resta-nos vigiar cada movimento, denunciar cada manobra e empurrar as pautas que realmente importam — serviços públicos, soberania das estatais e a redistribuição da riqueza. A luta é longa, mas a audácia de quem tenta legalizar a corrupção é também nossa chamada para reagir. Quem protege corrupto perde legitimidade; quem governa a favor do povo, como deve fazer um projeto verdadeiramente popular, não se intimida com artimanhas de gabinete.