A Câmara pode votar, já nesta semana, uma Proposta de Emenda à Constituição que cheira a conluio e proteção mútua entre políticos com as mãos sujas. O Centrão e a extrema-direita bolsonarista articularam, com a bênção de Hugo Motta (Republicanos-PB), a inclusão dessa PEC na pauta — uma proposta cuja finalidade explícita é blindar parlamentares investigados, permitindo que, por votações secretas, eles próprios barrassem processos e seguissem impunes. É urgente entender o que está em jogo: não se trata de um choque institucional qualquer, mas de uma tentativa clara de transformar o Congresso em uma fortaleza para criminosos de gravata.
A proposta foi pautada para a sessão da Câmara nesta terça-feira (16) e a definição do texto ocorrerá numa reunião de líderes pela manhã. Não é reforma, é blindagem: a proposta é uma lavanderia institucional para deputados acusados. Historicamente, até 2001 a Constituição previa que parlamentares não podiam ser processados sem licença de sua Casa. Depois veio a Emenda Constitucional 35/2001, que alterou o procedimento e determinou que o STF, ao receber uma denúncia contra deputado ou senador, avise a Casa para que ela vote — e apenas com maioria poderia suspender o andamento da ação. O que o Centrão quer agora é resgatar, por vias tortas, mecanismos que funcionam como uma anistia de fato, uma barreira ao funcionamento da Justiça.
Tudo isso não surge do nada: é resultado do toma-lá-dá-cá entre políticos que transformaram o Congresso num balcão de negócios e troca de favores. Hugo Motta começa a pagar a fatura pelo acordo que pôs fim ao motim bolsonarista em agosto — quando deputados do grupo ocuparam a mesa diretora da Câmara, barrando votações após a prisão de Jair Bolsonaro. O ex-presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que foi fiador da eleição de Motta, entrou no jogo como mediador. Em troca do fim do bloqueio, bolsonaristas cobram garantias para projetos-chave — entre eles a anistia ampla para os envolvidos no ataque antidemocrático de 8 de janeiro e para o próprio Bolsonaro, recentemente condenado a décadas de prisão.
A estratégia é óbvia: usar a PEC da blindagem como moeda de troca para aprovar uma anistia que revire o sentido de justiça e responsabilização no país. O que está em jogo é muito mais do que cargos: é a tentativa de enterrar a responsabilização e fortalecer um poder paralelo dentro do Congresso. Se a Câmara aprovar mecanismos que permitam barrar tramitações criminais por decisão interna, vamos assistir a um retrocesso imenso — uma volta ao velho teatro da impunidade em que o poder político se protege a si mesmo.
A base do governo Lula tomou conhecimento do acordo e, embora contrária, avalia que a PEC tem potencial de ser aprovada se não houver mobilização popular e pressão política intensa. Isso nos coloca diante de uma escolha: aceitar que o Parlamento se transforme em cortina protetora para golpistas e corruptos, ou forçar uma resistência que conte com a militância, movimentos sociais e o próprio PT empenhado em não ceder a chantagens. Não é momento para meias-medidas: derrotar essa manobra exige unidade e clareza de objetivos.
A direita tem pressa — afinal, trata-se de garantir a sobrevivência política e criminal de seus líderes. Não podemos ter a mesma tranquilidade. A defesa intransigente da democracia e da responsabilização dos que atentaram contra ela deve ser prioridade para a esquerda e para toda a sociedade que não compactua com retrocessos autoritários. Lula e o PT, mais do que gestores eleitorais, precisam ser peças centrais nesta resistência, articulando frentes e convocando a militância para que os acordos do Centrão não se transformem em aval para impunidade.
Se a Câmara avançar com essa agenda, não será apenas um golpe institucional: será a confirmação de que parte do Estado legislativo quer se tornar um santuário para os poderosos. Resta à sociedade reagir, ocupar as ruas e exigir que a democracia não seja mercadoria negociada entre caciques. Sem pressão popular, essas manobras têm tudo para prosperar — e então não haverá tribunal que segure a fúria dos que preferem salvar privilégios ao custo do país.