A morte de um adolescente durante abordagem em São Paulo — registrada por uma câmera corporal da Polícia Militar — deveria ser um motivo a mais para avançarmos na transparência e no controle social das forças de segurança. Mas não: parte do Congresso quer justamente o contrário. Nesta terça-feira (12), a Comissão de Segurança Pública da Câmara aprovou em voto simbólico um projeto do deputado Alberto Fraga (PL-DF) que suspende duas portarias do governo federal que orientam o uso de câmeras corporais e fixam requisitos técnicos mínimos para esses equipamentos. Um ataque à transparência que chega com a cara de pau de quem só quer blindar a truculência policial.
O ataque à fiscalização e ao controle social
As portarias que o projeto busca derrubar têm caráter orientativo — cabendo aos estados decidir a adoção — e foram desenhadas para uniformizar procedimentos, condicionar repasses de verbas federais e garantir registro de ocorrências, armazenamento e situações em que as câmeras são obrigatórias. Uma delas, editada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública em maio de 2024, condiciona repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional ao cumprimento dessas diretrizes. Ou seja: é uma ferramenta para forçar padrões mínimos e evitar que a desculpa da “autonomia estadual” vire sinônimo de impunidade.
O relator do projeto, deputado Sargento Portugal (Pode-RJ), justificou a iniciativa afirmando que as portarias teriam caráter apenas orientador e que a lei “não autoriza” regulamentação por portaria do Executivo. “Ambos os dispositivos acima têm caráter precipuamente orientador, demonstrando que o conteúdo da Lei fundante não autoriza regulamentação de câmeras por meio de Portaria do Executivo” — deputado Sargento Portugal. Traduzindo: para alguns deputados, normas que podem reduzir mortes e proteger corpos não valem tanto quanto a liberdade de atuação da corporação quando interessar politicamente.
A votação ocorreu em caráter simbólico, sem debate, e com o presidente da comissão, Paulo Bilynskyj (PL-SP), cortando a palavra de quem tentou discutir a matéria. Deputados que levantaram questionamentos — como Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) e Duda Salabert (PDT-MG) — protestaram contra o que chamaram de autoritarismo na condução dos trabalhos. “O senhor não me passou a palavra para orientar e depois me tirou a possibilidade de discutir o projeto” — deputado Pastor Henrique Vieira. É curioso: quem fecha o microfone para discutir transparência quer que sejamos cúmplices do silêncio.
Isso não é tecnicidade: é proteção à blindagem institucional. A ofensiva contra as câmeras não é um detalhe burocrático. É parte de um projeto político mais amplo que quer reduzir mecanismos de responsabilização e reforçar a impunidade policial. As mesmas forças que apoiaram o bolsonarismo e sua “lei e ordem” agora tentam impedir que a própria sociedade saiba o que acontece nas abordagens. Quem perde é a população, que paga com vidas.
E quem ganha? A velha aliança entre setor conservador do Congresso, corporações que resistem à modernização e operadores da impunidade. Não à toa, o autor do projeto é um deputado do PL, partido que carrega as marcas do bolsonarismo. O que está em jogo é simples: democratizar o uso da força ou manter as portas fechadas para investigações e críticas.
Não se trata de tecnicalidade neutra: é escolha de classe. Defender as câmeras é defender o direito à vida, a transparência do Estado e a possibilidade de controle popular sobre as instituições públicas — valores que um projeto emancipador e democrático deve priorizar. Lula e o PT, mais do que uma alternativa eleitoral, têm papel central na recomposição de um bloco popular que promova reformas reais de segurança com controle social, valorização do serviço público e oposição às receitas privatistas e neoliberais.
Se a esquerda se omitir agora, permitirá que a direita reescreva as regras da impunidade. Não podemos aceitar que o Congresso use manobras regimentais para calar debates sobre vidas. É hora de mobilizar parlamentares, movimentos sociais e a opinião pública para defender a obrigatoriedade mínima de câmeras, padrões técnicos e financiamento condicionado. Só assim evitaremos que a tecnologia da fiscalização seja transformada em cúmplice do arbítrio.