A defesa do tenente-coronel Mauro Cid entrou no Supremo Tribunal Federal pedindo o fim das medidas cautelares e a declaração de extinção da punibilidade — ou seja, que a pena já teria sido cumprida. O pedido, protocolado nesta sexta-feira (12) e endereçado ao ministro Alexandre de Moraes, vem numa sequência que expõe não só a confusão jurídica que ronda os setores mais próximos do bolsonarismo, mas também a disposição de seus advogados em buscar todos os atalhos possíveis para livrar o investigado das restrições impostas. A pergunta que fica no ar: que país é esse onde a contagem de tempo vira milagre jurídico para quem atuou na trama golpista?
Pena já cumprida
A estratégia da defesa, chefiada pelo advogado Cezar Bitencourt, é simples na forma e controversa no conteúdo: subtrair do período da pena o tempo em que Cid esteve preso preventivamente e submetido a cautelares. Em linguagem processual, pedem a detração — o desconto do tempo de restrição de liberdade da pena final. “Considerando a pena imposta foi de dois anos, e que Mauro Cid está com restrição de liberdade havidos mais de dois anos e quatro meses […] extinto está, fora de toda dúvida, o cumprimento da pena”, diz a petição da defesa de Cezar Bitencourt. O que seria leitura técnica virou narrativa de alívio antecipado para figuras que orbitaram as conspirações contra a ordem democrática.
Além do pedido óbvio de retirada da tornozeleira eletrônica, a defesa requer a “imediata revogação das cautelares diversas da prisão”, como consta no documento dirigido ao ministro Alexandre de Moraes. Eles também querem a devolução de bens e valores apreendidos e a restituição dos passaportes do militar e de familiares — um pacote completo de demandas para recuperar o padrão de vida sem perturbações. É o roteiro clássico: de suspeito em investigação a cidadão com todos os direitos restituídos, com argumentações técnicas que soam como bula para impunidade.
Cid foi preso preventivamente em maio de 2023 e, desde setembro daquele ano, cumpre medidas como recolhimento domiciliar noturno e monitoramento eletrônico. O tribunal, ao julgar o acordo de colaboração premiada, validou-o por unanimidade, excluindo apenas o benefício do perdão judicial e fixando a pena em dois anos. Ou seja: o cálculo que hoje embasa o pedido de extinção da punibilidade parte de um acordo reconhecido pelo próprio Supremo, mas agora disputado na interpretação do tempo efetivamente cumprido.
Não é possível separar esse episódio do contexto político mais amplo: estamos falando do núcleo que tentou abalar a democracia e que, quando confrontado, busca todas as manobras para minimizar consequências. É curioso — para dizer o mínimo — que figuras tão íntimas à narrativa golpista do bolsonarismo agora recorram ao discurso da “proteção” da Polícia Federal prevista no acordo e, ao mesmo tempo, afirmem que “por ora, não há necessidade” dessa proteção. A ambivalência é reveladora: proteção só quando convém, exposição midiática quando interessa.
Enquanto a defesa ciente batalha nos autos por liberdade plena, a sociedade observa o processo e contabiliza sinais. Os mesmos que incentivaram e se beneficiaram de ações antidemocráticas tentam agora voltar ao convívio sem restrições, com a pose de vítimas de um Estado de Direito seletivo. Quem foi atingido pela trama — e quem defendeu a Constituição durante a crise — não pode aceitar que explicações formais sirvam de passaporte de retorno sem que se faça justiça plena.
O desfecho desse pedido no STF será um termômetro da capacidade institucional de resistir às tentativas de restauração de privilégios. Se o argumento da defesa for acolhido, teremos mais que um caso jurídico: será um recado político sobre quem conta com indulgência e quem não conta. Se for negado, haverá combustível para a luta democrática retomar fôlego contra a impunidade organizada. A batalha judicial segue, e com ela a obrigação de não baixar a guarda diante dos que tentam transformar o foro e os códigos em antídotos para o autoritarismo.