Enquanto o Supremo Tribunal Federal avança no julgamento da trama golpista, uma articulação no Congresso trabalha a todo vapor para enterrar a justiça e entornar um coquetel de impunidade em favor dos responsáveis pelos ataques de 8 de janeiro — e, claro, do próprio Jair Bolsonaro. É chocante? Deveria ser. Mas, para quem acompanha o bolsonarismo desde o início, é só mais um capítulo previsível do manual de sobrevivência da extrema direita brasileira: pautar a anistia enquanto o STF ainda examina as provas do golpe.
Bastidores e interesses
Nos corredores da Câmara, a pauta da anistia não anda — ela voa. Governadores como Tarcísio de Freitas entraram de corpo e alma nesse corre, pastores fanáticos como Silas Malafaia apressam defendores, e a família Bolsonaro coordena acertos com aliados dentro e fora do país. Em jogo, não está apenas a absolvição moral de vandalismo político: está a possibilidade concreta de que o próprio ex-presidente recupere direitos políticos e volte a disputar eleições. É a prática do “salve-se quem puder” em regime legislativo.
Interlocutores próximos à articulação são claros sobre a candura da intenção. “Se houver votos e ‘clima ambiente’, eu não vou ter como segurar essa votação da anistia a golpistas”, disse Hugo Motta (Republicanos-PB). E para fechar com chave de ouro o tom autoral da operação, há quem defenda nada menos que uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. “Ampla, geral e irrestrita”, defende Eduardo Bolsonaro. Sim, você leu certo: a proposta é limpar tudo, como se crimes contra a democracia pudessem ser varridos com uma canetada oportunista.
O centrão, true to form, tenta vender a narrativa de que só quer “calibrar” o texto. Tradução: negociar para que a medida fique palatável — mas suficientemente eficaz — a tempo de salvar aliados e manter o bolo de acordos que sustenta essa coalizão. O cronograma já foi traçado nos bastidores: duas semanas para colocar a proposta em votação, se o ambiente e os votos permitirem. Enquanto isso, o STF continua desfiando provas e responsabilizando os arquitetos e executores do golpe. E a pergunta que ecoa é óbvia: quem arcará com o custo político de anular um julgamento com base em interesses eleitorais mesquinhos?
A articulação política tem a cara do Brasil que resistimos: a dos ricos, dos pastores, dos entreguistas e dos que tramam com o imperialismo para voltar ao poder. Eles vão usar toda a malemolência do centrão e as pressões internacionais — sim, até interlocutores ligados à Casa Branca aparecem na história — para tentar transformar uma tentativa de subversão democrática em uma “questão de pacificação”. Que pacificação é essa que passa por perdoar quem atacou a própria República?
Enquanto a direita corre para garantir impunidade, nós, que queremos uma saída popular e anticapitalista, precisamos lembrar que o combate à impunidade é também combate à lógica que entrega nossas riquezas e serviços públicos aos bilionários. Não há neutralidade entre defender estatais, direitos e democracia e permitir que golpistas saiam impunes. Lula e o PT, para além das disputas eleitorais, são — ou devem ser — peças centrais de uma estratégia mais ampla: consolidar derrotas políticas da direita e abrir caminho para medidas que realmente enfraqueçam a lógica do capital financeiro no país.
A batalha não será só jurídica: será política e social. Mobilizações nas ruas, pressão social dos sindicatos, unidade dos movimentos populares e vigilância dos parlamentares comprometidos com a democracia serão decisivas. O Congresso tenta jogar uma cortina de fumaça com negociações de gabinete; nós precisamos responder com clareza, organização e luta. Afinal, garantir que golpe não seja anistiado é garantir que o futuro do país não volte a ser decidido pelos mesmos que saquearam o presente. Quem achava que a direita ia desistir está enganado — devemos dizer o mesmo a quem pensa em negociar nossa democracia por um acordo de interesses.