Desde que os julgamentos relacionados à tentativa de golpe e aos ataques de 8 de janeiro começaram, o ministro Luiz Fux tem oscilado entre posições que ora parecem coerentes com a defesa da ordem democrática, ora cheiram a protecionismo jurídico que embaraça quem realmente atacou o Estado. Um levantamento do g1 sobre 67 decisões do Supremo entre setembro de 2023 e a condenação de Jair Bolsonaro revela contradições que não podem ser varridas para debaixo do tapete: em quase todos os casos Fux apoiou a condenação por golpe, mas nas horas decisivas — quando o dedo apontava para o centro da trama — ele recuou.
Inconsistências que salvam ou complicam
Em 65 das 67 decisões, Fux concordou que os réus foram culpados por tentativa de golpe de Estado; as exceções foram Jair Bolsonaro e Débora Rodrigues, a “Débora do Batom”. Também em 65 decisões ele aceitou que o STF fosse competente para julgar os réus; novamente, Bolsonaro e Débora receberam tratamento distinto. No caso do ex-presidente, Fux extrapolou o texto da lei ao afirmar que não haveria golpe porque não houve deposição de governo legitimamente constituído — alegação que transforma o crime de tentativa em algo que só ocorreria se o plano tivesse dado certo. Segundo ele, um “autogolpe” praticado por presidente durante o mandato não se enquadra no artigo que criminaliza a tentativa de depor o governo.
“Como o juiz deve analisar o caso com base na denúncia, e com base na responsabilidade individual de cada réu, não há proibição de que ocorram resultados como esse, e que à primeira vista podem parecer uma contradição incompreensível. É preciso lembrar que divergências – e, inclusive, discussões acaloradas – são comuns no Direito, uma área humana essencialmente argumentativa.” — Pedro Kenne, Procurador da República e mestre em Direito
Há também uma mudança de critério sobre a competência: Fux sustentou que, por não haver prerrogativa de foro após o fim do mandato, os casos de Bolsonaro e de Débora deveriam ir à primeira instância — ou, se o STF fosse julgá-los, isso deveria ocorrer no Plenário, não na Primeira Turma. A decisão prática, no entanto, foi outra. Em outras palavras: a mesma toga que condenou 65 pessoas por golpe pôs uma lente diferente sobre os protagonistas principais.
Isso expõe uma incoerência perigosa: as regras do jogo parecem variar conforme o poder e a notoriedade do réu. No front dos argumentos, Fux também mudou de postura sobre o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito: em 13 decisões ele entendeu que o crime está contido no de golpe, e, portanto, as penas não deveriam se somar. Ainda assim, no julgamento do núcleo central da trama, condenou Mauro Cid e Braga Netto por tentativa de abolição, mas não os por golpe — postura que gera mais perguntas que respostas.
“O caso da Débora não tem nenhuma diferença em relação aos outros réus do 8 de janeiro. Se o ministro Fux estava julgando e condenando todos eles sem questionar a competência do Supremo ou da turma e depois mudou, é muito difícil entender, porque o caso dela não tem nenhuma particularidade que justificasse isso. A única diferença, talvez, é porque teve uma repercussão maior.” — Thiago Bottino, professor e doutor em Direito (FGV)
“Se o ministro Fux estava julgando e condenando todos eles sem questionar a competência do Supremo e depois mudou, é difícil entender. Há uma percepção de mudança de critério.” — Eloísa Machado, professora de Direito (FGV)
A direita tentou golpe, e é imprescindível que a justiça não seja seletiva na hora de punir os responsáveis.
Se a fragilidade desses argumentos fosse meramente acadêmica, paciência; mas não é: estamos falando de quem organizou e incentivou ataques ao Estado democrático para manter privilégios e retrocessos. É hora de exigir coerência das instituições e de fortalecer as forças populares que defendem a democracia. Lula e o PT, apesar de críticas que devemos manter — e que fazemos — representam hoje uma trincheira essencial para impedir a restauração autoritária. Não podemos permitir que a técnica jurídica sirva de escudo para golpistas: a luta contra a direita é política, jurídica e cultural. Nossa tarefa continua — denunciar, mobilizar e derrotar os que querem nos devolver às trevas dos privilégios e das privatizações.