A imagem de uma senhora de 73 anos sendo levada a uma prisão paulistana choca, mas não deveria surpreender: vivemos num país onde a linha tênue entre “justiça” e espetáculo de pirotecnia jurídica é atropelada por interesses políticos e midiáticos. Iraci Megume Nagoshi, condenada pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, viu sua prisão domiciliar revogada pelo ministro Alexandre de Moraes no último dia 16 de julho e desembarcou na Penitenciária Feminina de Sant’Anna na segunda-feira (28). Nada menos que 983 violações das regras impostas – da falta de sinal de GPS ao desligamento da tornozeleira – teriam motivado essa decisão. Mas até que ponto um judiciário que se proclama guardião da democracia age em nome do Estado de Direito, e quando se deixa levar por retóricas de punição implacável com fins de espetáculo político?
Transferência e violações
Segundo o próprio despacho de Moraes, a idosa descumpriu reiteradamente as condições da prisão domiciliar: saídas não autorizadas, perda de sinal do equipamento eletrônico e até bateria descarregada. Testemunhas desse enredo bizarro? as equipes de monitoramento da SAP, que contabilizaram desde abril de 2025 essas “infrações”. A defesa, porém, alega que muitos desses deslocamentos tinham justificativa médica, incluindo fisioterapia, musculação, pilates e hidroginástica, atividades que garantiriam a qualidade de vida de quem já enfrentou cirurgia no quadril e no fêmur.
“A idosa enfrenta um quadro de saúde delicado e está submetida a condições carcerárias que comprometem gravemente sua dignidade e sua vida”, afirma o advogado Jaysson França, responsável pelo caso. A própria SAP reconhece esse histórico clínico, mas rebate as acusações de maus-tratos: em nota, garante que Iraci “está recebendo toda a assistência, em cela individual com cama, colchão, lençol, cobertor e itens de higiene pessoal, conforme as normativas vigentes”, além de informar que há consulta médica agendada para 15/08.
Resposta oficial e contexto da condenação
Em meio a essa disputa de versões, o Estado se esforça para mostrar normalidade. “As denúncias não procedem”, afirma a secretaria, sem, no entanto, detalhar como se dará o atendimento médico de rotina. Enquanto isso, Alexandre de Moraes seguiu o manual do “endurecimento de penas” a toque de piano midiático. Iraci foi sentenciada inicialmente a 14 anos de prisão em regime fechado pelos crimes de golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático de Direito, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
A prisão domiciliar, concedida em junho de 2024, impôs à idosa não só a tornozeleira, mas também a proibição de usar redes sociais e de manter contato com outros réus. Estamos falando de uma mulher que seria atropelada pelo sistema não por violência letal, mas por não cumprir minuciosas exigências de um dispositivo que se revela quase tão implacável quanto a sentença em si. Para Moraes, as atividades de lazer eram “desprezo pela pena imposta e pelo próprio sistema jurídico”.
Por fim, resta perguntar: até onde a justiça pode se afastar do bom senso e da proporcionalidade sem perder completamente o verniz democrático? Enquanto as cortinas se fecham na cela de Sant’Anna, a sociedade civil acompanha perplexa essa coreografia de leis e violações. A história de Iraci escancara o descompasso entre discurso e prática, revelando que, muitas vezes, a balança da Justiça pode pender não por critérios equilibrados, mas por interesses que se disfarçam de dever cívico.