No primeiro dia de sustentações orais sobre a trama golpista, ficou claro que as defesas escolheram não negar os fatos descritos pela Procuradoria-Geral da República — optaram por picotar a verdade, individualizar responsabilidades e transformar um plano de ataque à ordem constitucional em argumentos técnicos de gabinete. Era de esperarmos outro roteiro? A direita, acuada, prefere debates de perímetro do que encarar o conjunto do filme golpista que quase arrancou nossa democracia à força.
Admissão das reuniões e a tentativa de naturalizar o abuso
Advogados reconheceram que houve encontros em que se discutiu reverter o resultado eleitoral. Mas a tática foi sempre a mesma: “meu cliente estava, mas não falou nada”; “meu cliente não participou”; “meu cliente não colocou as tropas à disposição”. Em outras palavras, a estratégia é transformar cumplicidade em silêncio conivente — como se a omissão fosse inocência. As defesas assumiram que houve reuniões, mas tentaram transformar o crime em detalhe técnico. O espetáculo é grotesco: admitem o roteiro e negam a autoria moral ou política.
“Se você analisar cada ato separado, pode ser que não dê importância; mas é preciso observar os elementos de maneira globalizada.” — Paulo Gonet. Essa frase do procurador-geral é uma bofetada de lógica contra a narrativa fragmentadora das defesas. Porque a história não se explica peça por peça; ela se entende quando se vê o conjunto: monitoramento de autoridades, compra de celulares, debates sobre financiamento e o tal “Copa 22” — um plano que não é teoria, é ação.
Demóstenes Torres, advogado do almirante Almir Garnier, até reconheceu reuniões entre Bolsonaro e ministros militares, mas tentou salvar seu cliente alegando que não houve apoio explícito ao golpe. Mais ainda, sustentou que houve uma “desistência voluntária” por parte de comandantes — uma tentativa óbvia de transformar a ausência de um ato final em ato de escolha legal. “Houve uma ‘desistência voluntária’ por parte dos comandantes”, disse Demóstenes. Traduzindo: se o Exército não fez o que se esperava dos golpistas, então os golpistas seriam meros sonhadores. Ríspido, risível e perigoso.
Retrato ou filme? A disputa que define o veredicto
A briga jurídica é essa: fragmentar o retrato para tornar cada pincelada irrelevante, ou olhar o filme inteiro e reconhecer a conspiração em curso. As defesas tentam transformar um conjunto de atos coordenados em “atos preparatórios” desconexos. Mas os documentos e as comunicações mostram que já havia execução em andamento — não um brainstorm de má-fé, mas um esforço coordenado para subverter a vontade popular.
Não se trata de debate jurídico abstrato: trata-se de uma tentativa de arrancar a democracia pelas raízes. O que está em julgamento não é apenas a responsabilidade individual de cada réu, mas a materialização de um projeto autoritário que se apoiou em mentiras, em milícias digitais e em apoios concretos dentro das Forças Armadas e do aparelho de Estado. Permitir que isso seja reduzido a tecnicalidades é jogar o passado — e o futuro — para um risco constante.
Para nós, que militamos pela redemocratização e pelo fortalecimento das instituições públicas contra os surtos privatistas e os bilionários da extrema-direita, este julgamento tem um significado histórico. Não é só sobre punir quem lançou mãos ao golpe; é reafirmar que a reconstrução do país passa pela defesa das estatais, por políticas populares e por um projeto que vá além das substituições eleitorais — um projeto em que o PT e Lula podem, sim, ser centrais para impulsionar uma nova etapa de luta anticapitalista, desde que mantenhamos o pé firme nas ruas e nas instituições.
No fim das contas, a omissão das teses conspiratórias em plenário — aquela de “ditadura judicial” propagandeada no exterior — desnudou a estratégia: na praça pública gritam perseguição, no tribunal apelam para tecnicismos. É hora de não nos deixarmos enganar: a esquerda precisa transformar essa batalha jurídica em impulso político, reconstruir forças populares e jamais permitir que a direita reencarne suas velhas e novas formas de violência institucional.