A base aliada do governo acendeu o sinal vermelho: existe um risco real e calculado de que a oposição tente, no plenário da Câmara, transformar o projeto original da anistia em uma janela de impunidade ampla — incluindo o capitão do golpe, Jair Bolsonaro. A manobra é conhecida: aprova-se um texto-base aparentemente mais brando e, no calor da votação dos destaques, altera-se o que convém com maioria simples. E quem duvida? Basta olhar os interesses em jogo.
O risco do destaque
No rito parlamentar, primeiro se vota o parecer do relator — o texto-base — e, depois, cada partido pode apresentar destaques para alterar trechos específicos. Como se trata de projeto de lei, qualquer alteração aprovada no plenário precisa apenas de maioria simples (metade mais um dos votantes). Isso torna a manobra muito mais fácil do que aprovar a urgência, que exigiu maioria absoluta (257 votos).
“O relatório não vai ser o pior, eles [bolsonaristas] vão apresentar destaque e, com maioria simples, incluir a anistia para Bolsonaro. Abriu espaço para isso”, disse um governista. E há quem já tenha até batizado a proposta: o relator, deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), tem defendido que o foco será na redução das penas previstas em lei — daí a piada interna de chamarem a matéria de “projeto da dosimetria”. “Até agora não tem nem rascunho do texto… aqueles que atentaram contra a democracia e o estado democrático de direito não serão contemplados”, disse Paulinho da Força em entrevista ao Estúdio I, da GloboNews — Paulinho da Força.
Se o destaque passar, teremos uma anistia que abraçaria o próprio capitão do golpe — uma afronta ao povo e à memória dos democratas mortos e feridos pela tentativa de ruptura.
Os deputados do Centrão publicamente fingem repulsa à anistia ampla, mas nos bastidores a conversa é outra: há deputados pragmáticos da oposição articulando-se para que o texto pautado seja a base que eles mesmos remodelem no plenário. “Ele vai fazer um texto brando, leve e frouxo, mas vai ser pautado. E aí a gente muda no plenário como a gente quiser”, disse um deputado da oposição, que pretende levar a estratégia para a reunião da próxima semana. Outro, com um sorriso cínico, resumiu: “Defender um projeto é igual fazer linguiça. Não importa o que entra, importa o que sai.”
O que está em jogo
Não é só Bolsonaro individualmente: o projeto pode mexer nas penas para crimes gravíssimos contra a democracia. Hoje, o crime de golpe de estado tem punição de 4 a 12 anos; a abolição violenta do estado democrático de direito, de 4 a 8 anos. A minuta que circula prevê reduzir essas penalidades para 2 a 8 anos e 2 a 6 anos, respectivamente, além de eliminar a cumulação entre os dois crimes. Em termos concretos: uma pena pelo golpe poderia ficar menor do que a pena por roubo de celular. Parlamentares do PT comemoraram quando o endurecimento contra atentados à democracia foi consolidado; acham que seria um desastre tirar força dessas punições enquanto os julgamentos seguem em curso.
“Que patifaria! Querem transformar o PL da anistia em PL da dosimetria? Ainda falam que isso está de comum acordo com o Supremo para não afrontá-lo. Isso só pode ser brincadeira”, escreveu o deputado Carlos Jordy (PL-RJ) — Carlos Jordy (PL-RJ).
O ex-presidente já carrega sentenças pesadas: 27 anos e 3 meses por cinco crimes — golpe de Estado; abolição violenta do estado democrático de direito; organização criminosa; dano qualificado; e deterioração de patrimônio tombado. Reduzir penas via “dosimetria” é uma forma elegante de abrir a porta da impunidade.
Não podemos permitir que o plenário vire oficina de maquiagem para criminosos do golpe; é hora de pressão, rua e voto por um país sem impunidade.
A batalha legislativa que vem aí não é técnica: é política, simbólica e decisiva para a defesa da democracia. O PT e as forças democráticas têm a responsabilidade histórica de não permitir esse conserto por dentro — e a sociedade deve estar atenta, cobrando deputados, ocupando as ruas e fazendo valer o óbvio: quem atentou contra a democracia deve ser responsabilizado, não anistiado em conchavo parlamentar.