O Senado aprovou, nesta terça-feira (2), uma alteração na Lei da Ficha Limpa que muda o marco inicial da inelegibilidade para a maioria dos casos — e devolve ao jogo político uma charada que pode beneficiar figuras já condenadas. Com 50 votos a favor e 24 contra, o projeto segue agora para sanção do presidente Lula (PT). A evolução legislativa foi apresentada como “modernização”, mas, para quem vive a luta política de verdade, é óbvio que mexer no tempo da punição é mexer na política de quem se mantém ou volta a ocupar espaços de poder. Quem ganha com isso? A direita, sempre pronta a buscar atalho para retornar ao palanque.
O que muda
Atualmente, a inelegibilidade de oito anos começa a ser contada ao fim do mandato que o político cassado deveria cumprir. A alteração aprovada pelo Senado passa a prever que, na maior parte dos casos, esse prazo passe a contar a partir da cassação do mandato — ou, em outros crimes, a partir da condenação por órgão colegiado. Na prática, a medida tende a reduzir o tempo em que políticos cassados ficam fora das urnas, retomando candidaturas antes do que hoje acontece.
“Eu faço questão dessa modernização, dessa atualização da legislação da lei da ficha limpa para dar o espírito do legislador quando da votação da lei. A inelegibilidade, ela não pode ser eterna. Está no texto da lei oito anos, não pode ser nove nem vinte. O meu voto é sim” — Davi Alcolumbre (União-AP)
A mudança valerá para deputados, senadores, vereadores, governadores, prefeitos e vices. Ela também prevê mecanismo para unificar períodos de inelegibilidade acumulados, limitando a soma a, no máximo, 12 anos.
Impactos, exceções e quem fica de fora
Importante: o projeto preserva normas mais duras para crimes graves. Para crimes hediondos, lavagem de dinheiro, crimes praticados por organização criminosa e outros graves, a inelegibilidade continua a contar desde a sentença até oito anos após o cumprimento da pena — ou seja, não vale para crimes hediondos e lavagem de dinheiro. Essa foi uma demanda explícita do senador Sérgio Moro e também do relator Weverton Rocha, que acabou acatando a manutenção das exceções.
“O espírito da Lei da Ficha Limpa é que quem foi punido com inelegibilidade fique por duas eleições fora do pleito. Com esta lei que nós estamos aprovando agora, ninguém, por crime eleitoral, ficará mais por duas eleições fora do pleito, o que eu entendo que é uma anomalia” — Marcelo Castro (MDB-PI)
Juristas consultados por veículos da imprensa observam que a mudança não mexe na jurisprudência do TSE quanto a casos de abuso de poder econômico ou político: a inelegibilidade continua a ser contada, nesses crimes, a partir da data da eleição em que o crime foi cometido. “Apesar de mexer na redação, o texto não muda a jurisprudência já aplicada pelo Tribunal Superior Eleitoral”, afirmam especialistas.
Isso explica por que a alteração não afeta a condição do ex-presidente Jair Bolsonaro, inelegível até 2 de outubro de 2030 por abuso de poder político. Em outras palavras, o projeto não tira nem põe inelegibilidade no caso dele — e também não interfere nos processos em curso no STF, como o que o acusa de tentativa de golpe.
Exemplos práticos ajudam a entender: hoje, um deputado cassado no primeiro ano de mandato pode ficar inelegível por até 11 anos (três anos restantes do mandato + oito anos de inelegibilidade). Com a nova regra, esse tempo seria menor, pois os oito anos passariam a contar desde a cassação.
A proposta prevê ainda aplicação imediata das mudanças, inclusive para condenações já em andamento — uma porta aberta para recontagens de prazos e reanálises que podem devolver políticos às urnas mais cedo.
No tabuleiro político, a votação mostra o jogo: enquanto a direita se espreme buscando brechas, o campo progressista precisa estar vigilante. Não se trata apenas de tecnicalidade jurídica; trata-se de quem pode disputar eleições, ocupar espaços e, sobretudo, disputar a agenda do país. Se o objetivo real é fortalecer instituições democráticas e punir os corruptos, por que reduzir prazos e abrir exceções? Ou será que o objetivo é simplesmente salvar políticos e preparar a volta dos mesmos atores que defendem privatização, entrega do patrimônio público e o aplauso aos bilionários?
O presidente Lula terá agora a caneta na mão. A pressão será grande dos dois lados. A tarefa para quem luta por um projeto popular e pela reconstrução de um país sem a direita mercenária é clara: acompanhar cada passo, denunciar acordos que favoreçam corruptos e construir alternativa política que não dependa de atalhos legais, mas de organização social e mobilização popular. Afinal, a democracia não se reconstrói com ajustes para amigáveis voltar ao jogo — reconstrói-se com políticas que mudem a correlação de forças nas ruas e nas urnas.