O Supremo Tribunal Federal deu um recado importante sobre uma questão sensível: o retorno imediato de crianças trazidas ilegalmente ao Brasil para seus países de origem não pode ser um ato mecânico quando houver indícios objetivos de violência doméstica. Em tempos de retrocessos sociais e de direita embalada por discursos autoritários, essa decisão do STF — que contém boas e necessárias ressalvas — mostra que o Judiciário pode, sim, proteger vidas sem abrir mão do devido processo.
Convenção da Haia
A discussão se apoia na Convenção de Haia de 1980, que regula o chamado sequestro internacional de crianças — situações em que um dos pais leva uma criança a outro país sem autorização do outro responsável, ou ultrapassa o tempo combinado de retorno após férias, por exemplo. A convenção estabelece procedimentos para o retorno, autoriza cooperação entre autoridades e prevê medidas de urgência. Mas a letra fria de um tratado nunca pode sobrepor-se à proteção de quem é mais vulnerável: a infância. Não se trata de defender impunidade, mas de impedir que a burocracia provoque novos danos.
Julgamento e recomendações
No plenário, os ministros acompanharam o relator, o presidente Luís Roberto Barroso, ao estabelecer que antes de enviar uma criança ao exterior deve haver um procedimento que garanta contraditório e ampla defesa aos pais. Em outras palavras: nada de execuções automáticas que arrancam crianças de lares sem investigação prévia. Os ministros também construíram uma tese que servirá de parâmetro nacional e apresentaram recomendações práticas: o Conselho Nacional de Justiça deve montar, em 60 dias, um grupo de trabalho para elaborar uma resolução que acelere e torne mais eficiente os processos de restituição; a decisão final sobre o retorno deve ocorrer em até um ano; o Poder Executivo precisa tomar medidas estruturais para fortalecer a autoridade central — a Advocacia-Geral da União — e também criar protocolos de atendimento a mulheres e crianças nas unidades consulares brasileiras no exterior.
Esse é o tipo de decisão que não agrade aos donos do poder econômico e às teses autoritárias, porque prioriza vidas sobre prazos burocráticos. A pauta social exige mais do que palavras: exige estruturas que protejam os mais frágeis.
Partidos e vozes em campo
Uma das ações foi proposta pelo antigo DEM, que alegou lacunas na Convenção que poderiam permitir interpretações incompatíveis com a Constituição. O partido criticou a previsão de retorno imediato e pediu que o envio de jovens ao exterior só ocorra quando estritamente necessário para proteger o menor. “Tem-se entendido que, por força da Convenção, a ordem de retorno da criança a seu país de origem poderia se operar de forma automática, sem qualquer investigação prévia acerca das condições do menor e das circunstâncias de sua transferência”, afirmou o partido.
O PSOL, por sua vez, pediu que a interpretação da Convenção esteja alinhada à Constituição, defendendo que o Brasil deve impedir o retorno mesmo quando a criança não é a vítima direta, mas o contexto familiar expõe o menor a riscos por conta de violência contra um dos pais. “A melhor alternativa a ser adotada, a fim de garantir a proteção da criança, é impedir o seu retorno ao lar que lhe submeta a uma situação intolerável, mesmo quando seus pais forem as vítimas diretas da violência física e/ou psicológica”, declarou o partido.
E vozes internacionais? O Unicef sintetizou o óbvio humanitário: “Nada justifica morte ou sequestro de crianças” – Unicef — uma frase que, em teoria, deveria unir todas as forças democráticas, mas que, sabemos, incomoda quem lucra com o caos e com a desproteção social.
Este é um passo necessário, mas insuficiente, numa conjuntura em que a direita e suas oligarquias querem desmontar tudo que protege a população. Precisamos garantir que as recomendações saiam do papel: treinamento eficaz nos consulados, estrutura reforçada na AGU e procedimentos céleres e humanizados. Lula e o PT, quando colocam a proteção social no centro, mostram que políticas públicas e combate à pobreza andam juntos com direitos humanos. Que essa decisão do STF seja mais um instrumento da luta por um Brasil que escolha a vida e os direitos das crianças — e que a direita, com seu repertório de retrocessos, seja finalmente posta para fora do caminho.